28 jan 2016 / Media & Publicações

Revista Exame - Entrevista a Sofia Calheiros - Os líderes têm que voltar à adolescência

Sofia Calheiros foi a primeira coach portuguesa certificada. Há mais de duas décadas que ajuda executivos de topo a gerarem mais resultados

 

Antes, era uma palavra quase exclusiva do mundo das empresas, o coaching. Eram poucos os que sabiam que o anglicismo serve para designar o processo de acompanhamento personalizado a executivos que os ajuda a encontrar soluções no sentido de atingir os seus objetivos e os das organizações que lideram. Com a ajuda de um coach treinador, por assim dizer, um líder percebe como transformar intenções em ações que gerem resultados, desenvolvendo competências de liderança e transformando comportamentos de forma a impactarem nas suas equipas e no negócio.

 

Nos últimos anos, porém, este conceito deu-se a descobrir e passou para a esfera da sociedade. Mas nem por isso tem deixado de gerar equívocos e os coaches proliferam, confundindo-se com o mundo da autoajuda e das palestras de motivação.

 

"O cenário mudou muito, é verdade. Mas ainda bem que há imensa gente a fazer coaching em Portugal, até porque eu lutei por isso. Quando estava a desbravar isto sozinha, há mais de 15 anos, tinha de explicar sempre tudo do princípio, porque ninguém sabia do que se tratava", conta Sofia Calheiros, a primeira coach portuguesa certificada como profissional pela International Coaching Federation (ICF), organização mundial formada por coaches profissionais e pessoais, com mais de 22 mil membros associados. Foi, aliás, a responsável pelo lançamento da representação portuguesa da ICF.

 

Fundou e liderou a Conceito O2 durante 16 anos e atualmente está à frente da Sofia Calheiros & Associates, que criou no ano passado, e continua a fazer aquilo que gosta: coaching de executivos e de equipas de alta direção. "Como em todas as áreas que emergem, há profissionais bons e profissionais maus. Há muita diversidade e, confesso, alguma dela assusta-me. Mas sei que o mercado é regulador e, sozinho, fará a seleção natural. No início, achava que tinha de haver mais regulação, mas percebi que a certificação não é tudo", conta a profissional, que na sua lista de clientes tem empresas como a Microsoft, EDP, Millennium BCP, Samsung, Outsystems e L'Oréal.

 

Ajudar na partilha

O seu trabalho junto dos gestores é motivá-los, diz, para um "trabalho de autoconhecimento" dos seus pontos fortes e pontos fracos para melhorar os primeiros e aceitar os segundos. "Os pontos fracos são, na verdade, o grande tema da liderança nos últimos tempos. Os líderes de hoje partilham as suas fragilidades. Praticam a liderança com a partilha dos seus pontos fracos. A verdade é que quem está em posições de liderança, no atual contexto, não tem a solução para tudo. Sentem-se fragilizados por isso e trabalham com pessoas que são tão bem preparadas e profissionais quanto eles." Se um líder está à procura de um caminho, "não o pode fazer sozinho, tem de chamar os outros à participação".

 

Esta tendência, explica, será mais acentuada no futuro, com a emergência dos 'millennials' (nascidos entre os anos 80 e os primeiros anos do século XXI) no mundo organizacional. "São pessoas mais diferenciadas, capazes de pensar por si próprias, e não querem obedecer apenas por que sim: querem participar, desenvolver, partilhar. Estes miúdos foram educados pela minha geração, que os ouviu, explicou sem lhes impor. Negociámos sempre com eles. É uma geração mimada, é certo, mas a responsabilidade também é nossa. E agora estão a entrar no mercado de trabalho: querem ser tidos em conta, querem progredir rapidamente e ser reconhecidos. E querem fazer coisas diferentes", assegura. É por isso que são cada vez mais as empresas a trabalhar, não em programas de mudança (esse é um dos objetivos maiores do coaching), mas de transformação cultural.

 

"Mudança não é a mesma coisa que transformação. Mudanças foi o que o mundo corporativo fez nos últimos 20 anos. Transformação é o que está a acontecer atualmente em algumas organizações, que tiveram de mudar o seu negócio em 180 graus", admite. O grande desafio é fazer a transformação enquanto a organização está em ação e a produzir. "É o que está a acontecer na minha própria empresa. E é assustador. Porque tenho de transformar o negócio enquanto trabalho", conta. A Sofia Calheiros & Associates reúne um grupo de profissionais de coaching, muitos portugueses, mas também nomes internacionais, para trabalhar a liderança, o desenvolvimento de equipas, a comunicação, a motivação, a confiança e o feedback, a inovação e a cultura organizacional, entre outras temáticas. "A Conceito O2 esteve 16 anos no mercado e continuava a crescer. Contudo, de vez em quando temos de fazer fortes mudanças, dependendo da nossa evolução pessoal. Chega uma certa altura em que as zonas de conforto criam, naturalmente, um desalinhamento com os nossos valores. De repente, temos de nos lembrar do que queríamos fazer quando éramos adolescentes. Olho para as lideranças com quem trabalho e penso que se esqueceram do que desejavam, com toda a paixão, quando eram adolescentes. E é preciso que voltem à adolescência."

 

A noção de propósito, do trabalho como meio para atingir um fim maior, que não apenas o financeiro, está hoje mais presente no seio das organizações. "O tema da espiritualidade nas empresas já dava alguns sinais quando eu estava a entrar com o coaching em Portugal, mas agora está muito mais intenso temos um propósito maior do que nós próprios. Caiu-se numa descrença relativamente a muita coisa: continuamos a produzir e a procurar resultados. Isso não muda, o que muda é que, enquanto somos orientados para os resultados, também procuramos um propósito maior", explica.

 

Essa busca irá intensificar-se à medida que o mundo digital se for impondo. "Em cinco anos, quem não souber fazer programação será analfabeto. Vamos ter de lidar com isso. A começar pelos líderes", refere a especialista. A era da tecnologia afeta há muito as lideranças: "Trabalham muito mais e quero acreditar que esta adaptação ao digital seja apenas uma época de transição para a Humanidade. Com a ilusão de que podemos trabalhar como queremos e onde queremos acabamos por estar sempre ligados à 'máquina', 24 horas por dia. O irónico é que vivemos com uma sensação de liberdade da qual não estamos, de facto, a usufruir."

 

Daí que os espaços de recuperação sejam cada vez mais importantes para os líderes e que o tema do equilíbrio entre trabalho e vida pessoal seja um dos mais determinantes para o bem-estar dos trabalhadores. É normalmente uma das dimensões que nos inquéritos ao clima organizacional mais sai penalizada. Assim como a questão da comunicação. "Em Portugal, ainda há muitas estruturas pesadas, tão hierarquizadas que às vezes o que está a ser executado cá em baixo nada tem a ver com o que foi pedido lá em cima. Mas noto no meu trabalho apesar de trabalhar com o topo, gosto de descer na estrutura, encontro cada vez mais estruturas flats, com menos patamares hierárquicos. E isso é positivo, sobretudo quando temos líderes menos autoritários, mais humanos."

 

Como o coaching trabalha

Criada numa família de mulheres, o tema da liderança no feminino é-lhe muito caro. "Ainda são poucas as mulheres que chegam a um lugar cimeiro nas organizações, mesmo que respondam por 60% da população. Há um grande espaço de crescimento", acredita. Mas para isso é preciso vencer a barreira da invisibilidade. Esse, aliás, não é um problema que afete apenas o género feminino. "A visibilidade é uma das questões que por vezes tenho de trabalhar com os executivos, o que não é nada fácil. Há muitos homens que pedem ajuda quando, chegando a um determinado patamar da sua carreira, precisam de ganhar visibilidade, nem que seja apenas interna. Porque sabem que para serem respeitados como líderes não precisam de ser apenas tecnicamente bons naquilo que fazem é necessário que os outros o saibam", explica.

 

Todavia, "quando trabalho com mulheres que estão em posições de liderança, sempre que percecionam que há oportunidade para passar para uma área de maior poder e exposição recuam. E acham sempre que não estão suficientemente preparadas para assumir o cargo, que não são especialistas, que, apesar do seu currículo invejável, ainda têm de fazer mais um MBA (master of business and administration) em Harvard ou noutro sítio de igual prestígio para terem as competências adequadas. Acham sempre que lhes falta um bocadinho assim... Já os homens não têm problemas em assumir-se como especialistas", garante a coach.

 

Uma das principais ferramentas do coaching, normalmente a inicial, é o método dos 360 graus, uma técnica de diagnóstico que avalia o comportamento dos líderes. São estes que convidam pessoas à sua volta, entre colegas, amigos e até familiares, a opinarem sobre o seu comportamento e desempenho. As respostas são depois inseridas numa base de dados e, de seguida, comparadas com uma amostra que permite caracterizá-los e defini-los com um padrão construído a nível mundial. "As pessoas têm de ser recetivas e aceitarem os resultados, mesmo que estes digam que elas não são assim tão extraordinárias, o que acontece quase sempre", admite Sofia Calheiros. Desta forma é possível perceber quais as competências e qualidades comportamentais que mais necessitam ser trabalhadas.

 

"A principal técnica do coaching é a escuta. E fazer perguntas", especifica a especialista. São as chamadas powerful questions (perguntas poderosas), colocadas pelo coach. "Questão a questão, vamos eliminando dúvidas, incertezas, vamos encontrando áreas em que é preciso trabalhar mais, fazer ainda mais perguntas. A pessoa tem de tirar de lá o que quer. Nós não temos de querer", continua.

 

Sofia Calheiros participa também em muitas reuniões de comissões executivas e conselhos de administração. Normalmente, para acompanhar o líder: "Ele já está tão confortável que assume perante os outros que está a fazer coaching. Nessas situações, o meu papel é de observadora, para mais tarde lhe dar feedback sobre os seus comportamentos, para percebermos se ele está ou não a criar mudança. É como se eu estivesse a fazer de espelho."

 

Noutras ocasiões, quando o objetivo é trabalhar a coesão e a dinâmica entre equipas de topo, após o fim dos trabalhos da reunião o processo é de metacomunicação: comunicar sobre a comunicação, analisar o que se passou ao longo daquele encontro, a forma como se disse o que se disse, que intenções estavam por trás do que afirmaram. "Isso ajuda a eliminar imensos mal-entendidos. Quando saem dali, aqueles gestores já não levam o mal-estar que muitas vezes estas situações criam. Aliás, sentem-se mais coesos."

 

Ganha-se em resultados

Estas técnicas, além de "promoverem o alinhamento da pessoa entre o que tem de fazer e aquilo que os seus valores lhe ditam", também promovem resultados. Por um lado, aponta, o executivo sofre menos desgaste e, como tal, provoca menos desgaste à organização, reduzindo os conflitos interpessoais. Por outro lado, o aumento de confiança na equipa promove a delegação, e os resultados multiplicam-se através dos outros. Aumenta o alinhamento com as equipas, que ficam mais coesas. O que leva, por exemplo, a uma redução da necessidade de reuniões ou até do envio de e-mails: todos estão alinhados e sabem o que fazer. As coisas combinam-se facilmente, o stress organizacional diminui consideravelmente. "Tudo somado, temos efetivos ganhos de produtividade. As pessoas tornam-se mais criativas, mais proativas, exercitam a sua inteligência emocional", conclui Sofia Calheiros.

 

No entanto, adverte, o coaching "é como a vida". Nunca pára. Por isso é muito comum que, anos após um processo de coaching e de mudança concluído com êxito, o presidente executivo de uma empresa lhe volte a ligar para lhe dizer: "Preciso outra vez da sua ajuda." Afinal, o mundo está sempre em transformação e é preciso "continuamente ajudar a alinhar".

 

B. I.

Sofia Calheiros

Cargo
Executive coach e CEO da empresa Sofia Calheiros & Associates

Licenciatura
Psicologia Social e das Organizações

Percurso profissional
Foi psicoterapeuta e depois passou pelo mundo organizacional, como responsável da área de recursos humanos. Deu formação profissional e depois rendeu-se ao coaching executivo e de equipas de alta direção.

 

Diz que gosta de trabalhar com pessoas de alto rendimento, que não se satisfazem com pouco. Quase concluiu uma licenciatura em Medicina, em Paris, mas foi a Psicologia que a conquistou, exercendo-a sobretudo no mundo das organizações. Começou a fazer coaching quando ainda não sabia o que lhe chamar e é a primeira coach portuguesa certificada pela International Coaching Federation, cuja representação acabaria por trazer para Portugal o que estimulou a promoção do coaching no país. Depois de 16 anos à frente da Conceito O2 (CO2), presente em Portugal e em Angola, lançou no ano passado a Sofia Calheiros & Associates, que trabalha com empresas como a EDP e a Microsoft.

 

"SINTO QUE TRABALHO COM CAMPEÕES"

Sofia Calheiros trabalha com executivos de topo e equipas de alta direção para garantir mais resultados. Muitas das vezes, é só uma questão de "afinação"

Gerir e usar as emoções pode ser uma tarefa complicada para os líderes organizacionais. Mas só assim podem gerir equipas e treinar o autocontrolo.

 

Quais os temas que mais trabalha enquanto coach?

Um deles tem a ver com a visibilidade. Os líderes querem perceber de que forma podem ser mais visíveis dentro e fora da sua organização. No fundo, é um trabalho de autoconhecimento. É preciso que estes executivos tomem consciência de si próprios e dos outros, assim como dos desafios que têm de enfrentar. É uma área que trabalha muito o conhecimento das emoções, que é essencial para se poder trabalhar outra área, também muito procurada, o autocontrolo. Querem controlar as irritações e o stress em alturas de grande tensão. Isso também é muito importante quando o objetivo é melhorar a coesão das equipas: é necessário que haja um grande controlo da parte emocional. Não se trata de abafar as emoções, mas sim de usar essas emoções na intensidade certa, no tempo certo, com a pessoa certa. Sem as escamotear. Quando os processos de comunicação fluem com facilidade, normalmente os processos de decisão são mais ricos.

 

Os gestores ainda mostram muitas dificuldades em enfrentar as emoções?

Foi a ausência de emoções que nos levou para o caminho onde estamos agora, e que não é bonito. Basta pensar em todos os escândalos empresariais a que assistimos nos últimos anos... Continua-se a treinar os homens e as mulheres a não utilizarem as suas emoções é uma herança muito anglo-saxónica.

 

E como se pode temperar essa herança?

Mulheres para posições de destaque ajuda. Porque se é certo que também são muito racionais e lógicas, o que é necessário nas organizações, também há um lado emocional que tem muito a ver com a feminilidade e a maternidade e que ajuda a temperar a frieza do raciocínio. Contudo, para que as mulheres ganhem mais palco é preciso que trabalhem muito a sua autoconfiança. Têm muito menos confiança nelas próprias do que os homens têm neles.

 

Qual a condição para que uma organização e os seus gestores de topo estejam preparados para passar por um processo de coaching?

É preciso que a organização tenha maturidade suficiente para assumir riscos. Porque irá ser preciso tentar, testar, experimentar. Uma empresa que não esteja disponível para aceitar o erro não pode nunca crescer. Depois, é preciso dar tempo. O tema principal do coaching é o tempo. Porque não é só o tempo que o gestor vai passar com o coach. É todo o tempo que, depois da sessão, que é normalmente semanal, tenha disponível para trabalhar as emoções e o que foi dito e aprendido em cada reunião. A mudança só é assimilada se for trabalhada e pensada. E se for desejada.

 

Faz também coaching a políticos. As questões que tem de trabalhar com eles são muito diferentes das dos gestores empresariais?

É o mesmo trabalho de alinhamento que tem de ser feito. Têm de perceber como as pessoas os veem através de um processo de 360 graus, em que pedem a colegas, amigos e família para lhes darem feedback sobre os seus comportamentos e competências. Muitas vezes acham que a sua imagem é aquela que aparece nos media, e não é. É preciso que façam um trabalho de realinhamento com os seus valores, e não com os da máquina política, que é infernal. Vivem por vezes num dilema: fazem parte dessa máquina e retroalimentam-na. Contudo, não gostam dela e querem sair.

 

Gosta de trabalhar com sectores empresariais?

Gosto muito da área de tecnologias da informação, porque está em constante mudança. É preciso fazer um trabalho contínuo de alinhamento, fazer transformações radicais ao mesmo tempo que o negócio se faz a uma velocidade de cruzeiro.

 

Qual o seu maior desafio?

O meu trabalho e o da minha equipa é de afinação. Trabalhamos com pessoas que são muito boas, que já fizeram milhentas formações nos sítios mais incríveis e prestigiados do mundo, expostas a tudo o que é alta qualidade. Sinto mesmo que trabalho com campeões que precisam de afinar 'microcoisas'. Mas essas têm um impacto muito grande nas organizações.

 

Este artigo é parte integrante da edição de fevereiro de 2016 da Revista EXAME

ENTREVISTA DE:Joana Madeira Pereira
FOTOGRAFIA: José Carlos Carvalho

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